domingo, 28 de fevereiro de 2010

A caixa de música


Assim que chegava à velha aldeia, à primeira oportunidade corria para casa da sua vetusta tia. A razão primordial não era a saudade que sentia da tia, mas a saudade que tinha do objectivo mais bonito que conhecera em toda a vida.

Mal entrava em casa, cumprimentava a tia de raspão e dirigia-se à sala dos fundos. Antes de qualquer acção mais movimentada, primeiro olhava-a, como que confirmando que realmente existia. Depois, a medo, não fosse a magia quebrar-se, rodava a corda e, embevecida, deixava-se envolver pelo seu melancólico som e a sua vista perdia-se na dança da pequena bailarina que saía da caixa. Durante dois minutos e alguns segundos era feliz.

Quando a corda acabava, rodava novamente o manípulo e, mais uma vez se tornavam cúmplices. Sim, acreditava que esse era também o momento mais feliz da bailarina, os breves momentos em que a deixavam bailar, depois de tantas horas de espera.

Nunca conseguira satisfazer o desejo de vê-la bailar até ao limite do cansaço. Quase sempre a tia a interrompia e reclamava a posse da ilusão.


- Menina, isso não é para estragar. Veio de França. É muito caro e não é brinquedo de crianças.

O tempo não se detém e muito mais tarde, a filha mais velha, sabedora dos anseios maternos, calcorreou meia cidade com uma pesada caixa de música para lhe oferecer no Natal.
A mãe desembrulhou a prenda e de imediato os olhos encheram-se de lágrimas. A filha sorriu convicta da felicidade da mãe. À mãe, as lágrimas continuavam a lavar-lhe o rosto, mas, contrariamente ao esperado, de frustração e infelicidade egoístas.

À prenda, uma caixa de jóias com música, faltava o essencial da magia, a pequena e doce bailarina, vestida de tule.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Morra a data, pum, pum, pum


Uma fotografia é, supostamente, uma janela aberta. Através delas, tanto da janela, como da foto, podemos tornar nosso o que vemos. Quando uma fotografia tem data, tanto ela, como o momento a que se refere, ficam datados, impedindo, aos outros, a sua apropriação. O momento retratado torna-se apenas do fotógrafo, porque só ele esteve, naquele momento, lá.


Para os demais, é como espreitar pela janela dos outros e imiscuir-se nos seus momentos mais íntimos. Não é agradável.


Façam-me o favor de desactivaram essa aplicação. Morram as datas nas fotos! Pum!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um pouco mais de azul e eu era além, já dizia o M. Sá Carneiro que, a ver pelas fotos, sofria do mesmo mal que eu!

Não sei em que noite ou dia fui feita. Sei, apenas, que houve uma certa atrapalhação na arrumação dos meus genes. Uma vez que nasci 9 meses e um dia depois de os meus queridos progenitores se terem casado, poder-se-á ter dado o caso da arrumação ter sido feita depressinha demais. Não sei!

Sei que tenho genes de uma progenitora de fazer parar o trânsito. Loura, lindíssimos olhos verdes e uma carinha e corpo larocos que, a elas, fazia suspirar de inveja, a eles, de outras coisas.


Sei que tenho genes de um morenaço com pinta de actor que era o terror dos pais e o sonho das filhas.

Sei também que quando nasci, a minha mãe, olhando-me desconsolada, disse: queria muito ter uma menina, mas feia como esta é que não.

Sei que era para me chamar outra coisa, mas deram-me este nome, porque pelo menos tinha bela.

Sei que sempre me atribuíram as parecenças de uma avó, que nunca conheci, excepto em fotografia, mas sempre referiram que não lhe chegava aos calcanhares.

Sei que tenho um primor em forma de prima direita e com a qual dizem que sou levemente parecida (levemente, note-se).

Ainda bem que sou filha única, imagino a irmã que aí viria e a inveja que por aqui havia.

Afinal, pá, que é feito dos genes da gente bonita que tenho na família e que deviam ter passado para mim? Que é deles, pá?

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Gafanhotos

Chegara manso, qual gafanhoto de inverno. Fugiu-lhe ao olhar directo, pegou no jornal e sentou-se à lareira.

- Onde estiveste? – perguntou ela, secamente, enquanto dobrava as camisas.
- Pensando na vida, Natália, pensando na vida.
- E que concluíste?
- Que a pele é inútil se não fala o idioma do ardor e da água.
- Molhaste os pés e picaste-te nas ortigas?
- Não.
- És complicado, homem. Deixa-me passar a roupa.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Antes eras tão linda!

- Chega-te para lá.
- Ora essa, já nem na minha cama posso estar como quiser? E chego-me para lá, porquê?
- A tua presença atrofia-me.
- Merda de vida!
- Mais vale teres esta, que vida nenhuma. Vá, chega-te para lá.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A pele é inútil se não fala o idioma do ardor e da água.

Ensina-me o verbo, retira-me o silêncio. Leva-me ao grito.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Ainda a propósito do amor

Cuida do nosso filho – foram as suas últimas palavras, ditas entre golfadas de sangue.
- Não me deixes, não me deixes - repetiu ele vezes sem conta. Mas ela deixou-o, depois de pouco mais de doze anos de vida em comum.
Andou louco, perdido, meses a fio. Não cuidou dele, nem do filho e apenas disso se deu conta quando o petiz, a quem estava atribuída a tarefa de cozinheiro, se confundiu nos garrafões e cozinhou o almoço com petróleo em vez de azeite.
Isto não é vida para o meu filho. Devo-lhe isso, a ele e a ela, pensou. Vou arranjar uma mulher.

- Ó da casa?
- Ora seja bem aparecido, compadre. Que o traz por cá? - perguntou Inácio.
- Tá bom compadre? Venho apresentar-lhe uma proposta do meu compadre António – respondeu, solícito.
- Homessa, atão nem conheço o seu compadre- retorquiu Inácio.
- Conhece, quer dizer, já ouviu falar dele. Não se alembra do António do Monte Abegão, o deserdado, aquele que enviuvou, coitado, tão novo. Ficou com um gaiato numa mão e montes de dívidas na outra – arrematou Joaquim Coxo.
- Já m’alembro, o tal a quem à mulher lhe arrebentou o coração e morreu afogada no próprio sangue. Ouvi falar. Uma desgraça! Mas que me quer ele? – perguntou curioso.
- Olhe, até fui eu quem lhe dei a ideia. Sabe, o moço é de haveres, mas para já só tem dívidas à conta da doença da mulher e da casa que fez. Alembrei-me da sua Maria Perpétua. A moça não vai para nova e se calhar até lhe dava jeito o casório, - que me diz?
- Será assunto a ver.

O negócio fez-se. Maria deixava o encalho e casava-se. António recebia 40 contos e uma junta de bois e a promessa de mudança de vida.

Maria Perpétua, ansiosa esperava-o, perscrutando pelo postigo da porta. António, ao vê-la, deixou escorregar o sorriso da boca. Irra, velha e feia, pensou. Maria, ao vê-lo, pensou, bonito e novo de mais, vai-me dar demasiado trabalho.

Dormiram juntos uma vez na vida. Nunca mais repetiram, mas viveram juntos até ao fim!

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A propósito do Dia dos Namorados

- Se te queres casar, casa-te, não esperes é receber heranças minhas!
A conversa terminara assim, acrescentando-se apenas o ruído de uma porta ferozmente batida.
António ruminando despautérios que não teve coragem de proferir frente ao seu pai, dirigiu-se, a passos largos, para a aldeia.
-Que te disse ele? – perguntou Carolina, ansiosa.
-Que calculas? Que me deserdava se casasse contigo – respondeu ele, cabisbaixo.
- Deixa lá. Nem só de dinheiro vive o homem, retorquiu ela com voz apaziguadora.
Talvez a conversa se tenha passado assim, ou talvez não. Não estava lá para ver e apenas sei a versão que foi passando através da família.
O meu bisavô, filho de gente abastada, prendeu-se de amores por uma criada da casa. O romance não foi aceite e ele foi impedido de casar com a pretendida, sob pena de ser deserdado se o fizesse.
Apesar desse namoro ter nascido um filho, apenas se casou com a minha bisavó depois do meu trisavô ter morrido.
Dizem que a História é cíclica, neste caso parece que o foi. O meu avô também se prendeu de amores com uma criada da casa. Mas não foi tal pai, tal filho, porque este teve mais coragem. Não lhe importaram os haveres e casou-se com a sua bela. Foi efectivamente deserdado, mas o outro irmão, mais tarde, decidiu repartir a herança equitativamente.
Foi por isso que o meu pai me colocou o apelido de Mendes, a que ele não teve direito e o pai também dele também não. Ao que parece foram filhos só de mulheres!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

12 de Fevereiro

O tempo passa.
Hoje, eu e o meu ressonador, fazemos 27 anos de casados. Tanto ele como eu temos mais anos de casados do que de solteiros. Eu tenho mais 11 de casada que de solteira e ele mais 6. Atendendo a que tenho 43 (quase no fim) e ele 48, calculem a idade em que demos o nó. Como diz o meu sogro, em dias bem dispostos: - tá bonita a parte, tá!