terça-feira, 18 de maio de 2010

Beijos, avó


Foi, paulatinamente, recuando no tempo e deixando de conhecer as pessoas que amava. Antes de se recolher a um estado quase vegetal, contou-me, como se o fizesse a uma amiga adolescente, a história de um rapaz com quem mantinha um incipiente namoro. Obrigando-me a jurar que mantinha o segredo, confidenciou-me que se encontravam na fonte e que já o tinha beijado. Inventou-me um nome e disse-me adeus. Chamei-a pelo seu e disse-lhe também adeus. Despedimo-nos para sempre. Ela da amiga, eu da avó que tinha já sem ter.

Lembro-me dela, aliás, lembro-me muito dela. Chamava-se Joaquina e contava-me histórias que tinha aprendido de cor. Jogava comigo às cartas e fazia batota. Pela manhã iniciava um ritual a que eu assistia deliciada. Começava por lavar a cara com muita água e sabão, penteava os longos cabelos e humedecia-os com um pouco de “Restaurador Olex”, embranquecia os dentes com casca de pêra, gorgolejava um pouco de aguardente para afastar o mau hálito matinal e, como remate final da toilete, esfregava meticulosamente a cara com creme “Benamor”.

Filha de um professor, era a única dos sete irmãos que não sabia ler. Na idade em que deveria ter começado a aprendizagem, calhou-lhe na rifa a tarefa de ir ajudar uma tia a cuidar dos filhos gémeos. Quando regressou, achou-se demasiado adulta para começar e dedicou-se a aprender os lavores próprios da classe feminina. Ao longo da vida, nunca se perdoou por essa opção.
Era uma mulher expedita, rápida nas contas e com bom olho para o negócio. Um dia, notando-lhe algum desassossego de alma, perguntei:

- Avó, gosta de morar aqui?
- Esta herdade é grande, mas eu sou maior do que ela - respondeu-me.

Espero que haja muito vento no céu, para que a sua nuvem viaje muito.

Beijos, avó.

8 comentários:

Anónimo disse...

Muito, muito bem!
Bj.
JJC

AvoGi disse...

O problema das filhas mais velhas que geralmente ficavam em casa para cuidar dos irmos. antigamente.kis :(

Carapau disse...

"As avós" essa instituição...

Só conheci uma "de empréstimo" mas era como se fosse autêntica.
Talvez por isso dava cobertura a todas as tropelias que eu fazia e que outra "avó verdadeira" não me admitiria.
Mas isto só mais tarde eu entendi...

Calendas disse...

Professor: muito e muito obrigada.

GI: a minha avó cuidou dos primos, pq a tia era bastante doente. Nunca cuidou dos irmãos, ainda que tb houvesse gémeos na família. E não era a mais velha, foi escolhida sabe-se lá porquê, se calhar até se ofereceu.

Carapau: Tive tb uma avó emprestada (madrasta do meu pai), mas tinha um feitio muito diferente da outra. Não que me tratasse mal ou tivesse tratado mal o meu pai, simplesmente tinha outro feitio.

maria teresa disse...

É muito bom ter-se uma avó para recordar, a viver eternamente na nossa memória. Eu também tenho uma...

cantinhodacasa disse...

Encantador.

Sem mais palavras

Beijinho

Mar disse...

Que ternura. Muitas avós gostariam de ter netas como tu. Foi concerteza uma avó orgulhosa de ti.

Uma linda homenagem.

Calendas disse...

Squirrel: fomos as duas reciprocamente orgulhosas.