segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ad eternum

Invariavelmente, os meus pais e eu, passávamos cerca de um mês por ano nas casas dos meus avôs paternos e maternos. Ambos, nessa fase da sua vida, viviam em montes alentejanos à lonjura de 4 km de quaisquer outras almas viventes da minha faixa etária.

No mês anterior à fatídica ida, esperava a chegada da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian e escolhia criteriosamente seis livros - o máximo permitido - pelo peso. (Ainda hoje, e devido ao actual astronómico preço dos livros, um dos critérios que sigo é esse). Disciplinadamente, obrigava-me a adiar a leitura até estar instalada na casa dos avós.

Ainda que tentasse ler devagarinho, quase sempre a leitura acabava na segunda semana. Depois começava o suplício.

Nenhum dos meus avós tinha luz eléctrica, embora ambos tivessem televisão. No entanto, a caixinha mágica, por funcionar a bateria, e por as baterias serem de consumo rápido e de difícil transporte, era um bem que apenas servia para ver o telejornal, programa que pouco ou nada me interessava.

Nos dias depois dos livros, as horas corriam sempre demasiado devagarinho. Procurava dribla-las apanhando malmequeres; comendo romãs e, simultaneamente, fazendo apostas comigo mesma sobre a inevitabilidade de deixar, ou não, cair os bagos; procurando nos céus seres alienígenas e no desenho das nuvens as figuras mitológicas que conhecia. E durante todo o tempo do tempo, imaginava a diferença entre ter ou não ter um irmão. E o tempo, rindo-se de mim, tardava ainda mais as suas lides.

Depois do tempo dos livros, o Alentejo convertia-se em desassossego, em solidão, em saudade dos amigos, em desespero por voltar à civilização. Detestava-o.

Hoje continuo a detestá-lo, mas gosto de pensar que há aspectos, coisas na vida, que nos pontapeiam uma ou duas vezes e que nos acompanham ad aeternum. Assim posso dizer que tenho um trauma de infância que me faz detestar a minha terra. Já não parece tão mal e, além disso, os traumas estão na moda.

12 comentários:

Poetic Girl disse...

Revi-me na parte em que descreves que te enchias de livros, também eu fazia o mesmo, alguns da biblioteca, outros emprestados... e devorava-os rapidamente... ainda continuo a ler, não tanto como naquela altura, mas tenho saudades desse tempo. bjs

Calendas disse...

Eu não tenho saudades nenhumas desse tempo.Tenho saudades das pessoas que viviam nesse tempo, mas é uma coisa diferente.

AvoGi disse...

Olá regressaste!!! Poça, que saudades!!! pois eu acredito que viver numa província ou num lugarejo (desculpa )deve ser complicado para as pessoas de espírito aberto. Há umas mais cosmopolitas que outras. eu tb gosto de campo, mas somente para visitar , para viver lá ....não obrigada. kis e bom regresso.

Vício disse...

deixaste-me com a sensação de demodé

Carapau disse...

Pena que naquele tempo não houvesse contactos imediatos...
Emprestava-te um dos meus irmãos e perdias logo a mania de ter um.
:-)
Quanto aos livros também soube o que isso era: ter de ler devagarinho para durar mais tempo.
Não tenho que ter saudades, mas relembro com muita emoção esses meus tempos.

E isto ficou um bocado lamecha, devia ter ficado pelo irmão que te emprestava...

maria teresa disse...

Não tenho dessas recordações, a minha terra é Lisboa e não tinha família a vistar fora dela.
Mas lembro-me de umas férias passadas em Vieira de Leiria numa casa que o meu pai alugou, a rua era coberta de caruma e havia uma "biblioteca" onde requisitei vários livros. Foi lá que li vários volumes sobre Sandokan... para além disso ia a pé com a família até à praia que distava cerca de 3km. Tenho boas recordações dessas férias. Nunca mais lá voltei!

calendas disse...

Gi: hoje gosto de sítios desertos, mas apenas pq sei k me posso ir embora quando quiser.

Calendas disse...

E é a sensação correcta, Vício. E aquelas maravilhosas televisões?

Calendas disse...

Carapau, nem sabes o quanto esperneei para ter um irmão! "Amanda" lá um dos teus!

Calendas disse...

Teresa, lá nem havia bibliotecas, nem caruma, nem praia, nem coisa nenhuma. Só a televisaozita e muita imaginação.

Carapau disse...

Agora vem a Maria Teresa com o Sandokan - o Tigre da Malásia, do Emílio Salgari - um dos autores que eu li de fio a pavio. Aventuras em todas as partes do mundo, escritas por um tipo que quase não saíu da sua terra. Chegou a ser o escritor italiano mais traduzido no mundo, mas "graças à honestidade" dos editores morreu mais ou menos na miséria.

Pus-me a escrever aqui estas coisas, até parecia que estava em minha casa.
:-)
Desculpa lá.

cantinhodacasa disse...

Agora, o Alentejo deve ter magia.
Não falta nada.
Adoraria passar uns dias numa herdade alentejana.
Mas, como diz a Calendas, viria quando me apetecesse.

Beijinho